Cultivando a criança interior

Minha avó Alda faleceu praticamente às vésperas de completar 102 anos. Era uma anciã feliz, em cuja companhia todos gostavam de estar. Gargalhava sonoramente das piadas que lhe contavam e, com seus olhinhos radiantes e espírito aberto, escutava interessada o que as pessoas lhe contavam. Certa vez, pude constatar o esplendor de sua personalidade quando a levei para conhecer uma pedreira desativada que havia sido transformada em um parque. Ficou tão empolgada com a novidade que, num momento de distração meu, disparou à frente pelas passarelas escorregadias do local e meu deu um bom trabalho para alcançá-la. Contava então 96 anos de idade. Faleceu, infelizmente, alguns anos depois, por complicações decorrentes de uma cirurgia. Mas até o último momento viveu assim, pronta a rir, participar, aprender e interagir com as pessoas, que não se cansavam de estar por perto dela.

Já discutimos em outro momento que, do ponto de vista biológico, envelhecer caminha em paralelo à perda de reservas funcionais, que correspondem à disponibilidade de recursos essenciais à manutenção da vida física ou psíquica. A reserva cognitiva, que é o outro nome dado à reserva mental, é drasticamente diminuída no curso de um envelhecimento que não tenha ocorrido de maneira saudável como o de minha avó. Ela corresponde à capacidade das funções psíquicas manterem-se ativas, adaptativa e funcionalmente, apesar do envelhecimento do cérebro e das alterações fisiopatológicas daí decorrentes. Assim, mantendo-se intacta ou o menos afetada possível, num primeiro momento a reserva cognitiva seria garantida, dentro de uma perspectiva biológica, por fatores sobre os quais as pessoas exercem pouca ou nenhuma escolha, como a genética, a idade, o gênero ao nascimento e as alterações moleculares sofridas pelo corpo.

Contudo, também influenciam sua manutenção fatores que denominamos adquiridos, como o grau de instrução, as experiências vividas no decorrer da história pessoal e, por fim, as vivências afetivas da pessoa ao longo de sua existência. Ao contrário da genética e da idade, esses fatores são modificáveis pelo próprio indivíduo ou por sua rede de apoio.

Desse modo, se há fatores ligados ao estilo de vida que permitem às pessoas manter-se funcionais mesmo em uma idade cronológica avançada, como elas podem colocá-los em prática? Se você desconfiou que o título do post é a resposta a essa pergunta, acertou.



É realmente curioso que, para tratar de um tema tão sério como a degeneração do nosso sistema nervoso, somos convidados a olhar para a vida com mais leveza: cultivar nossa criança interior como ferramenta capaz de manter a mente saudável e ativa ao longo dos anos.

Isso ocorre porque o conceito abriga fatores favorecedores do aumento da capacidade das redes neuronais envolvidas, implicando maior eficiência na execução de tarefas e até compensando o mau funcionamento de setores já afetados pelo rompimento das redes anteriormente existentes. Em termos neurológicos, o investimento na expansão da qualidade das redes neuronais amplia a chamada arborização dendrítica, a qual provoca o aumento da densidade neuronal e sináptica e a mielinização de uma região cerebral chamada neocortex. O “novo córtex”, essa porção do cérebro que se expandiu na espécie humana comparada aos demais primatas, é responsável por nossa percepção sensorial, linguagem, comandos motores, consciência e raciocínio lógico.

Não temos como deixar de associar a ideia de declínio do sistema nervoso às doenças neurodegenerativas, em especial as demências, que guardam uma correlação mais estreita com a passagem do tempo. Numa simplificação extrema do conceito, as demências são doenças que antecipam ou aceleram o esgotamento das reservas funcionais do cérebro. Como condição que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, são muitas vezes associadas ao envelhecimento natural. No entanto, conforme o spoiler que já dei acima, pesquisas nos mostram que há maneiras de reduzir o risco de desenvolvê-las, e uma das mais eficazes é através de um estilo de vida que estimule o cérebro e mantenha nossa mente jovial.

Existem vários tipos de demência, sendo o Alzheimer de longe o mais conhecido e, também, a forma mais prevalente, seguida da demência vascular, demência por corpos de Lewy e demência frontotemporal. As várias demências possuem em comum um conjunto de sintomas associados ao declínio da memória, do pensamento e da capacidade de realizar atividades do dia a dia. Tornam-se visíveis pelo declínio cognitivo, comprometimento de memória, alterações comportamentais, perda de autonomia e funcionalidade. Pela experiência clínica eu acrescentaria a essa lista de sinais e sintomas a maneira de lidar com os afetos, tendo essa condição, portanto, também uma influência sobre os aspectos emocionais da vida.

Do ponto de vista molecular, as proteínas que participam do funcionamento cerebral precisam ser “dobradas”, isto é, é necessário dispor sequências de aminoácidos numa estrutura tridimensional crucial ao seu funcionamento. Uma proteína mal dobrada pode levar à perda de função ou, em alguns casos, ao desenvolvimento de doenças. Outra função importante em jogo é a “clivagem”, ou corte de moléculas polipeptídicas (proteínas) em fragmentos menores. A clivagem, por sua vez, é necessária para ativar ou desativar proteínas, processar proenzimas (formas inativas de enzimas) em enzimas ativas, ou para a degradação de proteínas defeituosas ou desnecessárias. Esses dois processos são críticos para a função das células e do organismo como um todo e pesquisas a seu respeito constituem uma esperança para pessoas com demências.

Proteínas com dobradura irregular são observadas nas principais etiologias relacionadas às demências: proteínas beta-amiloide e TAU no Alzheimer, proteínas TAU e TDP-43 na DFT, e alterações na alfa-sinucleína na demência por corpos de Lewy. O acúmulo das proteínas irregularmente dobradas ou clivadas implica redução do metabolismo energético, produção de espécies reativas de oxigênio e estresse oxidativo, dano inflamatório, disfunção sináptica e, finalmente, morte neuronal.

Além da constatação do depósito dessas proteínas e da aplicação de testes neurológicos, existem fatores que podem influenciar a apresentação clínica e a progressão da doença, como o grau de escolaridade, alfabetização, QI, capacidade de usar as competências cognitivas de forma flexível e eficiente, nível de complexidade ocupacional, participação em atividades de lazer, qualidade de vida e estímulos físicos, cognitivos e sociais.

O curioso é que esses indicativos, que são de natureza psicossocial, podem ocultar traços de demência mesmo se presentes marcadores neurobiológicos. Soa virtual demais para você? Então aí vai um dado prático interessante. Para o diagnóstico de alguns tipos de demência exige-se a presença de alterações vasculares (micro hemorragias e lacunas vasculares), depósitos de proteínas, atrofia temporal e dilatação ventricular, enquanto volume intracraniano, circunferência cerebral e espessura cortical constituem marcadores de maior ou menor reserva cognitiva. Pois bem, dependendo de qual o estudo considerado, entre 25 e 67% dos indivíduos considerados “normais” clinicamente têm algum tipo de demência, se apenas os critérios anatômicos e neurobiológicos forem utilizados para fechar o diagnóstico de demência. Em outras palavras: mesmo diante de uma base biológica deteriorada, pessoas com uma vida psíquica preservada conseguem permanecer fora do radar das doenças neurodegenerativas associadas ao envelhecimento natural. De fato, em relação a estas, a ciência tem mostrado que podemos adotar estratégias para retardar seu início ou até mesmo preveni-las. E é aqui que entra o conceito de "cultivar a criança interior".

Quando falamos nessa capacidade, estamos nos referindo à manutenção de um espírito jovial, aberto a novas experiências e ao conhecimento. Crianças são naturalmente criativas e curiosas; ao nutrir essas qualidades, podemos ajudar nosso cérebro a permanecer saudável e funcional por mais tempo.

Mas como cultivamos essa criança dentro de nós? As crianças estão sempre aprendendo, e o mesmo pode acontecer conosco. A aprendizagem contínua é uma das formas mais eficazes de manter o cérebro ativo. Não significa necessariamente voltar à escola, mas sim desenvolver novas habilidades, hobbies ou conhecimentos que deem vazão à nossa curiosidade. Aprender a tocar um instrumento, estudar um novo idioma, inteirar-se de um ramo do conhecimento como História, Botânica, Filosofia, Astronomia ou até mesmo atividades manuais, como pintura e artesanato, são ótimas formas de desafiar a mente.

Brincar não é algo exclusivo das crianças. Como adultos, podemos e devemos continuar a explorar o mundo e alimentar nosso lado lúdico por meio de interações com outras pessoas, momentos de lazer e brincadeiras mais estruturadas como palavras cruzadas, jogos de tabuleiro, quebra-cabeças e videogames, que podem se mostrar ferramentas valiosas para manter o cérebro entretido. Além disso, a criatividade, seja na forma de escrita, arte, música ou contação de histórias também desempenha um papel crucial na manutenção da saúde cerebral. Quando criamos, ativamos diversas áreas do cérebro, mantendo-as em constante funcionamento. 

Crianças saudáveis têm uma capacidade incrível de fazer amigos e socializar, algo que muitas vezes se torna mais difícil à medida que envelhecemos. No entanto, manter-se socialmente ativo, investindo tempo de qualidade em relações sociais é fundamental. Participar de grupos, clubes ou até mesmo simples encontros com amigos e familiares pode ajudar a manter o cérebro ativo e reduzir o risco de doenças neurodegenerativas. 

Além disso, movimento e exercício físico constantes são uma característica inerente à vida infantil e, ainda, uma parte essencial da saúde cerebral. O exercício regular pode melhorar a memória, o pensamento e reduzir o risco de doenças neurodegenerativas. Portanto, encontrar formas de se exercitar, como dançar, caminhar, executar as tarefas domésticas ou praticar um esporte pode ser uma excelente maneira de manter tanto o corpo quanto a mente saudáveis. 

Por fim, uma das características mais marcantes das crianças é a capacidade de viver no momento presente, sem preocupações excessivas com o futuro ou com o passado. Práticas como a meditação e o mindfulness nos ajudam a cultivar essa mentalidade, reduzindo o estresse. Estar presentes nos permite aproveitar melhor a vida e manter nossa mente mais calma e focada. Lembro-me bem que, após o ingresso na terceira idade, minha avó não mais se desesperava em excesso diante das dificuldades nem levava a si própria extremamente a sério, preferindo rir de suas eventuais gafes e confusões, o que conferia à sua vida uma leveza única.

Cultivar a criança interior também envolve adotar uma mentalidade positiva. Crianças são resilientes e têm uma capacidade incrível de se maravilhar com as coisas simples da vida. Manter uma atitude positiva, praticar a gratidão e o perdão e encontrar alegria nas pequenas coisas são formas poderosas de proteger nossa saúde mental. Quando estamos felizes e emocionalmente saudáveis, nosso cérebro também se beneficia.

Em conclusão, a prevenção da demência vai além de tomar medicamentos ou seguir dietas estritas. Trata-se de como vivemos nossas vidas, de como mantemos nosso espírito jovial, ativo e curioso. Cultivar nossa criança interior não é apenas uma forma de manter o cérebro saudável; é uma maneira de viver uma vida mais plena, mais rica e mais feliz. 

Ao lembrar-me de quem foi e de como viveu minha avozinha até o final de sua vida, penso que, para ela, a idade avançada não foi um obstáculo para viver com alegria, interagindo e estabelecendo trocas afetivas com todos que tiveram a sorte do seu convívio. Uma última observação sobre ela é que a vida não a privilegiou mais do que a qualquer um de nós; da periferia social em que viviam e ainda vivem os imigrantes, minha avó enfrentou a morte precoce de uma irmã, a guerra, trabalho duro, dificuldades financeiras que a levaram quase à fome, a ditadura, traços melancólicos que predominaram pela maior parte da vida adulta e um tumor no cérebro que quase a tirou do nosso convívio um pouco antes dos seus 70 anos de idade. Sua criança resiliente foi minuciosamente cultivada em meio a cada desafio vivido e vencido. Escreveu poemas. Floresceu quando estava pronta para desfrutar a imensa sabedoria acumulada.

Fica o convite para ler, como complementação à discussão de hoje, o post Como você escolheu envelhecer?, no qual o envelhecimento saudável é pensado a partir da capacidade de interagir e estabelecer trocas com as pessoas. Mas se você for mais do tipo cientista, talvez prefira aprofundar alguns tópicos abordados acima no livro que serviu como fonte para esse texto: Neurobiologia dos transtornos psiquiátricos, de João Quevedo e Ivan Izquierdo [Orgs.] (Porto Alegre: Artmed, 2019). Caso você leia em inglês, os três volumes de Cambridge Medical Reviews: Neurobiology and Psychiatry, de Robert Kerwin [Editor] (Cambridge University Press, 2011) também são uma fonte excelente. 

Espero que você se sinta inspirada(o) a redescobrir a alegria de aprender, brincar, e se conectar com as outras pessoas. Ao fazer isso, não só estamos promovendo o envelhecimento saudável, mas também criando uma vida capaz de manter, de forma perene, a doçura e a espontaneidade da infância.








Crédito da imagem: Jeremy Poland / iStock

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