Sulis + MInerva

Em Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, uma obra-prima da literatura mundial e pessoalmente um dos meus romances favoritos, o imperador romano, profundamente tocado pelo trágico amor por Antínoo, um jovem grego da Bitínia, fez dos seus vinte anos de reinado uma era dourada de paz e prosperidade. Não tendo tido filhos biológicos, adotou Antonino Pio, nomeando-o como seu sucessor e estipulando que Pio, por sua vez, adotaria Marco Aurélio. Seguiram-se então vinte e três anos sob Pio, após os quais Marco Aurélio, filho de Domícia Lucila e do pretor Marco Ânio Vero, assumiu o trono como sobrinho-neto de Adriano.

O retrato de Adriano por Yourcenar, marcado por seu pragmatismo e decisões controversas, assegurou o futuro que ele vislumbrara para seu Império. Ao adotar Pio, garantiu que Marco Aurélio ascendesse ao poder duas décadas depois, realizando seu desejo de colocar Roma nas mãos de um governante filosófico e letrado que valorizasse o pensamento e os ideais gregos.

Marco Aurélio, o imperador-filósofo, dedicou-se desde cedo ao conhecimento por intermédio da filosofia. Associando-se ao estoicismo, buscou a eudaimonia — a felicidade por meio da virtude moral (aretê) e da serenidade (ataraxia). Os estoicos viam a virtude como um veículo para a excelência e autorrealização.

Para minha surpresa, nos últimos anos ressurgiu o interesse pelo estoicismo. Alguns dos meus pacientes trouxeram isso ao consultório, perguntando como o estoicismo poderia contribuir com o tratamento. Eu não tive qualquer contato com o tema a não ser nos tempos de universidade, mas como trabalho com psicoterapia, resolvi investigar esse ramo da filosofia antiga, buscando compreender sua ligação com a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC).

Após algumas leituras sobre o tema, meu objetivo hoje será compartilhar alguns insights para você decidir por si só se o estoicismo, assim como a psicoterapia, pode realmente ajudar as pessoas do atual milênio a viver uma vida melhor e mais satisfatória.

Dito isso, vamos então explorar os fundamentos do estoicismo, os principais aspectos da psicoterapia e como essas duas tradições supostamente se conectariam para oferecer ferramentas valiosas visando o bem-estar e o crescimento pessoal.

Os fundamentos do estoicismo e sua relevância na contemporaneidade

Percebi, com alguma surpresa, que o estoicismo é um sistema filosófico completo, que compreende uma teoria física, uma ética naturalista e a lógica. Fundada em Atenas por Zenão de Cítio por volta de 300 a.C., essa corrente evoluiu com pensadores como Sêneca, Epíteto e Marco Aurélio, oferecendo orientação prática para uma vida melhor e influenciando profundamente toda a filosofia. Como é muito ampla, vou precisar me limitar ao que parece fazer mais sentido para os objetivos desse texto.

Segundo os estoicos, o caminho para uma boa vida requer o desenvolvimento da racionalidade e do autocontrole, viver em conformidade com a natureza e cultivar as quatro virtudes cardeais: sabedoria, coragem, justiça e temperança.

sabedoria compreende fazer escolhas racionais por meio de uma avaliação serena e do entendimento do que de fato podemos controlar. Os estoicos opõem-se a conceitos equivocados sobre o que é a felicidade, incentivando que nos alinhemos somente com o que verdadeiramente nos realiza. Cleantes definiu nosso objetivo final como sendo "viver em acordo com a natureza". A coragem vai além da bravura, abrangendo a resiliência mental e moral para vivermos de maneira íntegra e digna diante das adversidades. A justiça corresponde às ações justas e ao respeito ao próximo. Inspirados por um universo determinista, os estoicos destacam a necessidade da harmonia social e do comportamento ético. Temperança significa equilíbrio e autocontrole. Epíteto disse: "Não podemos escolher as circunstâncias externas, mas sempre podemos escolher como responder a elas." Essa ideia, conhecida como dicotomia do controle, nos encoraja a focar em nossos pensamentos, crenças e ações em vez de eventos externos, superando emoções destrutivas, em consonância com uma razão universal (logos).

O estoicismo oferece diversos princípios e práticas para aplicarmos essas virtudes. Adotar os princípios estoicos pode ajudar a formação da resiliência emocional, ao focarmos naquilo que de fato podemos controlar. Eles destacam a impermanência da vida, sua natureza finita e transitória, e a inevitabilidade das perdas ao longo do processo. Tornar-se resiliente implica ganhar perspectiva, ou seja, passar a enxergar as dificuldades do dia a dia como oportunidades para o crescimento pessoal. Permitir que emoções intensas se dissolvam nos capacita a fazer escolhas mais embasadas e eficazes. Assim como a prática atual da atenção plena ou mindfulness, o estoicismo promove a autoconsciência e o propósito de vida por meio do foco no momento presente. A prática da gratidão desloca nossa atenção para a abundância. De acordo com a "premeditatio malorum", imaginar os piores cenários possíveis para cada situação nos prepara para a adversidade e fortalece nossa resiliência. Refletir sobre a mortalidade, ou "memento mori", nos ajuda a valorizar a vida, a viver em torno de um propósito maior e a não desperdiçar tempo com questões fúteis. Abraçar o "amor fati", isto é, amar tudo o que nos acontece como sendo necessário para o nosso crescimento pessoal e realização, permite transformar desafios em oportunidades de prosperar. E entender a perspectiva dos outros é o que nos conduz a relacionamentos mais harmoniosos.

Ao mesmo tempo que o estoicismo possui muitos simpatizantes, ele também enfrenta inúmeras críticas. Alguns alegam que ele propõe uma atitude de passividade e de supressão emocional diante da vida. O estoicismo pode também soar rígido e individualista, à medida que parece promover a autossuficiência em detrimento de um sentido de comunidade. Além disso, o contexto cultural do estoicismo limitaria sua aplicação direta aos tempos em que vivemos hoje. No entanto, a racionalidade, a resiliência e a virtude estoicas atraem muitos daqueles que enfrentam os desafios da vida. A profundidade dessa escola de pensamento requer uma adaptação criteriosa se o seu intuito for promover o crescimento pessoal.

A psicoterapia moderna e suas relações com o estoicismo

Para a Terapia Cognitivo-Comportamental, inaugurada por Albert Ellis e Aaron T. Beck na década de 1960, pensamentos influenciam significativamente emoções e comportamentos. Já é amplamente aceito que emoções e comportamentos também podem moldar o pensamento, e que, juntos, esses componentes podem ainda desencadear sensações físicas. Ao identificar e trabalhar pensamentos errôneos ou desadaptativos, as pessoas podem alterar suas respostas emocionais e padrões de comportamento, desenvolvendo regulação emocional, assim como ações e pensamentos mais coerentes.

As técnicas centrais da TCC incluem identificar e corrigir distorções de pensamento, envolver-nos em atividades alinhadas com os nossos valores a fim de combatermos a depressão, nos expormos gradualmente a situações temidas e praticarmos a atenção plena para reduzirmos o estresse. A ativação comportamental, um foco específico da TCC, promove ainda o engajamento com atividades alinhadas com os nossos valores pessoais, reintroduzindo tarefas significativas e prazerosas na nossa rotina diária. Essa técnica é complementada pela experimentação comportamental, que envolve testar crenças por meio de experiências da vida real, a fim de modificar comportamentos e pensamentos que não nos estejam sendo úteis. Essas abordagens são particularmente eficazes para tratar ansiedade, depressão e outros distúrbios psiquiátricos. Sendo guiados por seus terapeutas no começo, os pacientes vão gradualmente tornando essas práticas mais fáceis e mais familiares, passando então a se auto-aplicarem as novas habilidades desenvolvidas.

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Tirei essa foto da cabeça de Sulis Minerva durante uma visita ao Royal Museum em Bath, Inglaterra. O nome original da cidade era "Aquae Sulis," que significa "as águas de Sulis" em latim. Os romanos foram atraídos pelas fontes termais daquela região e lá construíram em 50 d.C. um templo dedicado à deusa Sulis Minerva — uma combinação da deusa celta Sul e Minerva, a deusa romana da cura. Sulis Minerva simbolizava assim a fusão de duas entidades distintas, destacando o sincretismo cultural e religioso que possibilitou unir dois mundos.

Com isso em mente, e depois de fazer uma ediçãozinha meio capenga na imagem original para remover informações extras, decidi que a minha foto de Sulis seria a representação adequada do esforço em reunir dois legados do pensamento humano: a filosofia estoica e a psicoterapia moderna.




Integrando estoicismo e psicoterapia

A sobreposição entre a filosofia estoica e a psicoterapia moderna, especialmente a TCC, parece impressionante. Ambas valorizam um pensamento racional e equilibrado, incentivando-nos a mudar o modo como interpretamos e respondemos às situações, e a assumir a responsabilidade por nossas ações e escolhas. A visualização negativa dos estoicos se une à atenção plena para uma melhor consciência e gratidão. No estoicismo e na TCC, nossas virtudes e valores guiam nossas ações para torná-las mais significativas e nossas vidas mais satisfatórias.

O treinamento de resiliência do estoicismo assemelha-se à terapia de exposição da TCC no desenvolvimento de habilidades de enfrentamento e aumento da confiança para lidar com as adversidades. Ambas as abordagens promovem perspectivas mais amplas sobre os desafios da vida, reduzindo a ansiedade e as preocupações cotidianas — o estoicismo através de sua 'visão de cima' e a TCC através da reestruturação cognitiva de crenças e medos. A aceitação estoica equivale às abordagens baseadas na aceitação na psicoterapia, como a Terapia de Aceitação e Compromisso (TAC), que defendem a a aceitação da experiência sem resistências desnecessárias.

Essas são as semelhanças mais evidentes que me vêm à mente ao tentar combinar os princípios estoicos com a psicoterapia, mas pode haver mais. Ao mesclar essas abordagens, seria possível, em tese, cultivar uma mentalidade mais resiliente, enfrentar os desafios da vida com equanimidade e buscar viver uma vida mais satisfatória.

Embora eu não seja nenhum especialista em estoicismo, para mim fica claro que essa corrente filosófica pode ser interpretada ou usada de maneira inadequada para justificar características como indiferença ou apatia, especialmente por aqueles que não compreendem seus princípios corretamente. Uma simplificação excessiva pode levar à adoção superficial das ideias estoicas, negligenciando a profundidade e a complexidade da verdadeira prática do estoicismo.

Como em qualquer escola filosófica, sua aplicação e interpretação podem variar imensamente, portanto é essencial examinarmos criticamente seus princípios e adaptá-los cuidadosamente à nossa própria vida. Essa cautela é especialmente importante se tentarmos combinar a filosofia e as técnicas terapêuticas como um caminho para o nosso crescimento pessoal.

O estoicismo oferece insights profundos sobre resiliência e ética, mais bem realizados por meio de uma compreensão dos pormenores do que é dito e de uma aplicação que, deliberadamente, respeite seus pontos fortes e suas limitações.

Seria ótimo se, na aplicação dos princípios estoicos aos tempos atuais, pudéssemos integrar insights oferecidos pela teoria psicodinâmica, partindo do pressuposto de que os indivíduos são influenciados por forças psíquicas das quais podem não estar totalmente conscientes — o que talvez já tenha sido abordado dentro do conceito estoico de dicotomia do controle.

Vale ressaltar que o estoicismo enfatiza a importância dos nossos relacionamentos com os outros e do nosso lugar no mundo, destacando o significado dos laços comunitários, do engajamento político e de viver em harmonia com a natureza.

Mas, em última análise, é a você que cabe decidir se o que conversamos aqui hoje é ou não adequado à sua realidade.

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Assim como Adriano, ao escolher Pio propositalmente como seu sucessor, semeou a Roma culta e pacífica que floresceu sob Marco Aurélio, você também pode escolher quem você deseja se tornar. Esse texto é um grãozinho de areia no universo de sabedoria que você tem à sua disposição.

Como leitura adicional, recomendo Meditações de Marco Aurélio, Cartas de um estoico de Sêneca, Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar, How Effective is Stoicism as a form of Psychotherapy? de Anthony Collins e as diversas obras de Donald Robertson. A Universidade de Stanford também oferece uma introdução abrangente ao estoicismo e outras escolas filosóficas em plato.stanford.edu.

Por favor, me avise se houver outros materiais que você gostaria que eu adicionasse.

Obrigado e boas reflexões! 








Crédito da imagem: o autor

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