Bem-vindos ao ontem

Quem assistiu ao filme Meia-noite em Paris, de Woody Allen, vai lembrar-se do personagem Gil, um desiludido roteirista estadunidense a passeio por Paris. Gil, que não vê qualquer graça em viver tanto no seu país de origem como nos dias atuais, acredita que sua vida poderia ter sido muito mais interessante na Paris dos anos 1920. Se isso tivesse acontecido, ele teria sido contemporâneo de personalidades como Ernest Hemingway, Gertrude Stein, Pablo Picasso, Scott e Zelda Fitzgerald, só para citar alguns dos nomes que tornaram épico aquele momento da cena parisiense. A surpresa – e aqui vai o último spoiler que vou dar sobre o filme – foi Gil descobrir que naquele tempo também havia pessoas descontentes com a época em que viviam, desejando, assim como ele, ter pertencido a um passado ainda mais distante.

O post de hoje discutirá com você a viabilidade de sermos felizes diante dos desafios atuais, vivendo plenamente o agora e de uma maneira sinérgica com os recursos disponíveis e coerente com nossos projetos de vida.

Não raro, consideramos que as dificuldades vivenciadas hoje em dia são grandes demais para sustentarmos um projeto de felicidade semelhante ao das gerações anteriores. Assumimos que estas viviam em um mundo menos conturbado, menos competitivo, menos inseguro e, em virtude disso, eram capazes de se sentir satisfeitas com a própria vida, diferentemente da realidade atual. Assim, vivermos no tempo “errado” explicaria os nossos infortúnios e a nossa impossibilidade de ser felizes. Como se escrevêssemos nossa história de trás para frente.




Não é só aquele tipo de passado – o de antigamente – que o filme aborda. Outro aspecto, mais sutil, é a relação do escritor frustrado com sua noiva Inez, que o considera preso a fantasias e a um padrão de comportamento que o impede de se desenvolver na profissão e também no relacionamento. De fato, erro indesculpável é o de insistirmos em nos prender ao nosso próprio passado: às dificuldades e conflitos que já não existem mais, a méritos e conquistas pessoais que já perderam sua razão de ser, a pessoas e relacionamentos que não fazem mais sentido algum e, principalmente, a uma visão de mundo e a um jeito de enfrentar problemas que não nos serve mais em nada para lidar com o hoje.

A fantasia de voltar no tempo é uma alegoria para a estratégia, que todos nós estamos sujeitos a adotar, de negar nossa falta de controle sobre o que pode nos ameaçar. Se pudéssemos conhecer de antemão tudo o que poderá acontecer, seríamos mais seguros. O futuro, misterioso e surpreendente por definição, seria muito mais tolerável se fosse certo e previsível. Talvez não seja à toa que nossos filmes de ficção futurística projetem, com frequência, um mundo de caos e destruição, enquanto o passado geralmente é retratado em histórias de heroísmo e romances de época que refletem tempos gloriosos e repletos de finais felizes.

Não é apenas o Gil da obra de ficção que mantém sua mente no ontem. Todos nós, em nossas vidas cotidianas, podemos nos perceber de alguma forma presos a ele. O apego ao que já fomos se traduz em comportamentos incompatíveis com os desafios atuais, em emoções incoerentes com as circunstâncias que vivemos hoje e em ideias distorcidas quanto a nós mesmos, às outras pessoas e ao mundo. De fato, tentar enxergar o presente através das lentes do passado é a própria definição de neurose.  Pela neurose, nos apegamos ao já vivido, nem que seja aos momentos ruins, pois estes, por pior que sejam, ao menos são velhos conhecidos nossos. Isso é muito menos desconfortável do que lidar com o que a gente não faz ideia de como será. Nossa maneira de lidar com o tempo é testemunha de como enfrentamos nossas carências e medos. Mas como tirar os pés do passado e viver nosso tempo com plenitude?

Viver não é nem nunca foi simples. Da mesma forma que olhar para o futuro nos angustia hoje em dia, com as gerações passadas isso não era muito diferente. O “amanhã” foi e continua sendo sempre incerto. Quem passou por aqui antes de nós também se deparou com problemas reais, medos, dúvidas e angústias. Assim como nós, eles não sabiam como seria o futuro, se conseguiriam alcançar o que almejavam ou pelo menos se não corriam o risco de perder o que tinham conseguido. Como nós, eles também sonharam com o conforto de ter soluções prontas para problemas já conhecidos. E também, como nós, viveram o seu tempo lutando contra monstros que nada mais eram que imagens de um passado já não mais real. 

Não estou aqui desconsiderando os desafios absolutamente únicos do nosso tempo: a crise climática sem precedentes; a polarização política acirrada, num nível como nunca visto antes; a ameaça de guerra ampla envolvendo um aparato tecnológico inédito; pandemias e outros riscos biológicos de proporções globais, entre outras ameaças. Também não ignoro os questionamentos que, no plano pessoal, fazemos em função da nossa própria existência: tomamos as decisões das quais não nos arrependeremos no futuro? Estamos criando nossos filhos da maneira que de fato é a melhor para o futuro deles? Deveríamos ter esperado um pouco mais a parceira ou parceiro certo aparecerem antes de termos nos envolvido com a pessoa atual? Os valores culturais que absorvo pela Internet são compatíveis com o que desejo para mim e para os meus? Também não temos bola de cristal para saber, por exemplo, se as pessoas que admiramos hoje terão ou não seu lugar garantido na história. Nem se nossas escolhas se provarão como as melhores que poderíamos ter feito. Fato é que, entre uma dúvida e outra, um perigo e outro, não temos alternativa a não ser continuar vivendo, enfrentando os desafios e consertando nossos erros, na exata proporção em que os percebemos. Mas conseguiremos aprender com os reveses do passado para escrever o futuro de uma maneira diferente?

O desafio de viver o hoje com os aprendizados de ontem e os olhos voltados ao amanhã é o que verdadeiramente exprime nossa condição humana. Quantos de meus pacientes vêm ao consultório carregando em suas costas uma mochila cheia de problemas do passado: angústias, remorsos, mágoas, preocupações relacionadas a experiências já vividas. E não precisam ser idosos, vejo jovens igualmente reféns das suas trajetórias pessoais. De feridas que não permitiram curar. Isso, é claro, não mina a nostalgia, a lembrança feliz de coisas que aconteceram. Mas não justifica que amemos o passado a ponto de nos refugiarmos nele. No plano das nossas narrativas individuais não é diferente. Nos apegamos ao nosso passado, alimentando nossa neurose e nos distanciando da possibilidade de encontrar novas soluções para novos problemas, agarrados que permanecemos a questões antigas, talvez já inexistentes, a sentimentos desgastados e a memórias cheirando a mofo.

Vivendo suas vidas com maior ou menor dificuldade, as pessoas que passaram pelo mundo antes de nós tiveram que superar essas questões. Ao seu modo, nossos antecessores seguiram em frente de alguma forma e enfrentaram suas dificuldades, criaram novos caminhos, conduziram suas vidas diante do desconhecido, lutaram contra o seu próprio passado. Muitos deles chegaram ao destino final dizendo-se felizes ou tendo saboreado a vida conforme suas possibilidades. Foram empurrados adiante pela irrefreável condição humana, a despeito do receio de viver. Trabalharam, estudaram, casaram-se, separaram-se, tiveram filhos, netos, bisnetos, enviuvaram, sofreram, se divertiram, se emocionaram, se acidentaram, adoeceram, partiram.

Por mais que os cenários sejam diferentes, enfrentamos hoje os mesmos dilemas que eles: a dúvida sobre quem somos e para onde vamos, a doença, a guerra, o desconhecido. Talvez não no mesmo exato contexto, mas conosco acontecerá o mesmo, tanto no nosso microcosmo pessoal quanto no lugar em que ocupamos na história. Nossa saga é uma saga de sobrevivência à adversidade e à dúvida.

A isso, que considero a chave para a superação do apego ao passado, chamamos impermanência. Trata-se de uma verdade fundamental da vida, entrelaçada ao próprio tecido da nossa existência. Tudo o que experimentamos, desde os menores momentos até os maiores eventos, é transitório. O conceito de impermanência nos lembra que nada dura para sempre – nem a alegria, nem a tristeza, nem o sucesso, nem o fracasso. Ela nos ensina a abraçar a mudança, entendendo que a vida é um fluxo contínuo onde cada fase, cada experiência, fatalmente passará. Por um lado, essa transitoriedade nos permite apreciar o presente, sabendo que ele é efêmero. Nos encoraja a viver plenamente, a saborear os bons momentos sem nos apegarmos a eles e a suportar os momentos dolorosos com a certeza de que eles também passarão. A impermanência nos convida a desapegar dos nossos medos e prisões, reconhecendo que nossas lutas, preocupações e até nossos corpos não são permanentes, mas parte de um ciclo maior e em constante mudança. Por outro lado, a impermanência pode ser uma fonte de ansiedade, pois nos confronta com o desconhecido, inerente às mudanças vida afora, e com o inevitável fim das coisas que prezamos. No entanto, é exatamente essa incerteza e essa limitação de tempo que abrem as nossas portas para as possibilidades e o crescimento por nos moverem a procurar a felicidade. Ao aceitar a impermanência, cultivamos resiliência, aprendendo a nos adaptar e prosperar em meio à inconstância da vida. Ela nos ensina a estar presentes, a focar no que realmente importa e a encontrar paz em meio ao fluxo da existência.

Em última análise, a impermanência é um lembrete de nossa experiência humana compartilhada, conectando-nos na compreensão de que tudo, seja alegre ou doloroso, faz parte de uma jornada maior. É ao abraçar essa verdade que encontramos a força para navegar pela vida com graça e sabedoria. A impermanência também abrange a nossa própria história. Aceitá-la é entender de que, seja em relação ao passado do mundo, seja em relação à nossa história pessoal, algo muda dentro de nós como forma de nos adaptarmos à vida. E isso é bom.

***

É possível que um dia você, já com mais idade, olhe para trás e pense em quantas “bobagens” fez ou no que deixou de fazer por não se conectar com as demandas do momento presente. Para fugir disso, Gil toma uma decisão surpreendente no final do filme. Não vou contar como nem por quê, mas sua opção foi por viver o aqui e o agora. Uma escolha consciente pelo presente, com seus defeitos, mas também com todas as suas potencialidades.

Estarmos conscientes de que viver é compor a nossa narrativa no mesmo momento em que a estamos encenando, diante desse inexplicável e também insubstituível cenário a que chamamos vida. A nossa vida tal como ela acontece já. Condição inafastável que é aprendermos a lidar com o tempo enquanto o vivemos, penso que um dia alguém das gerações futuras assistirá àquele filme e pensará: “Ah, como eu queria ter vivido no começo do século XXI... A vida parecia tão menos complicada naqueles tempos!”

Carpe diem.

Abrace o hoje.








Crédito da imagem: Marco_Bonfanti / iStock

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