37.1052°S, 12.2777°O

De vez em quando, me dou o prazer de sobrevoar o globo pela tela do computador. Não que isso substitua a emoção de explorar ao vivo os sons, sabores, texturas, aromas e paisagens de lugares especiais. Mas, sob a luz amarelada do abajur e com música suave ao fundo, descobrir destinos que antes não existiam nem na imaginação é um prazer possível.

Certa vez, tracei uma rota marítima partindo da minha cidade, Porto Alegre, que não é banhada pelo mar, mas está relativamente próxima ao sul do litoral brasileiro. Me perguntei onde encontraria terra firme caso deslocasse o mouse toda a vida para a direita do mapa, partindo da praia mais próxima de mim aqui nas Américas até esbarrar em algum acidente geográfico de inigualável beleza no formoso continente africano. Foi no meio desse caminho que me deparei, em pleno Atlântico Sul, com o povoado mais remoto do planeta.

Sem atinar que minha linha reta imaginária era inviável na prática devido à curvatura da terra, lá pelo paralelo 37 sul e mais ou menos a 12 graus a oeste de Greenwich esbarrei numa pequena e quase imperceptível mancha sobre a tela azulada. Tentei pensar no que poderia ser aquele minúsculo, milimétrico ponto respingado, flutuante e solitário, em meio ao oceano descomunal. Incrédulo de uma nova descoberta marítima em pleno século XXI, imaginei tratar-se de algum pixel defeituoso da imagem gerada pelo satélite. Mas, aproximando-a, a cabeça de alfinete na tela passou a revelar uma cor esverdeada, como uma folha boiando sobre a imensidão azul, para então assumir os contornos de um pedacinho de terra firme afinal emergindo, triunfal, em meio à imensidão de água que a rodeava.

Logo verifiquei que a porção de terra tinha marcas da presença humana e também um nome. Uma localidade com endereço próprio em pleno oceano Atlântico chamada Tristão da Cunha.




 “Tristão da Cunha” – pensei, maravilhado com meu achado – esse nome era tão sonoro na minha língua materna, com um toque quinhentista que remetia à era gloriosa das navegações portuguesas. Um ponto quase imperceptível no mapa que já parecia familiar antes mesmo de ser explorado.

***

O post de hoje será sobre a descoberta da nossa singularidade e, ao final, o papel do outro na construção da nossa felicidade.

“Descobrir” Tristão da Cunha me levou a refletir que muitas vezes nos sentimos pequenos, isolados e sozinhos em meio a uma vastidão quase infinita, nos diferenciando do restante do mundo pelo que temos de menos. Quantos de nós não somos a única pessoa da antiga turma da escola que não teve filhos, o único funcionário do setor que não torce para time nenhum, o único da família que não se formou em Direito? Quantos de nós, em algum momento ou em algum aspecto da vida, já não nos vimos tão indefesos e solitários, procurando sobreviver sozinhos em meio a um deserto de proporções oceânicas?

A percepção da nossa singularidade, porém, também pode apontar para a direção oposta. Ao nos atribuir uma característica que só nós temos, ela nos diferencia de qualquer outra pessoa, definindo nossa identidade a partir do que temos a mais. Passamos a ser aquele cara que pediu demissão do banco para se tornar ator; a mãe de três filhos que venceu um concurso de dança; a pessoa que seguiu adiante mesmo após o suicídio da namorada; o cadeirante que vende seus quadros na feira de arte da cidade. Quando somos o que fizemos da nossa própria história, nossa distância até o continente é não mais que um indicativo do quão únicos nos tornamos.

Há diferentes maneiras de nos percebermos como o ponto mais isolado do planeta. Entre as possíveis, vou fazer referência à que nos leva a nos amarmos exatamente como somos.

Nossas diferenças podem parecer insignificantes quando a examinamos de longe. No entanto, é exatamente ao visualizar o que nos faz únicos que podemos catalisar mudanças internas para nos tornarmos uma versão melhorada de nós mesmos. Penso que, em última instância, somos nós e não os outros os responsáveis pelo nosso sofrimento e pela nossa felicidade. As causas de uma coisa ou outra podem até não estar alojadas dentro de nós; porém, somos nós próprios que escolhemos como agir diante delas.

Assim, pensamos nos passos de autoaceitação, autodescoberta, criatividade, empatia e compaixão, e por fim resiliência como valiosos recursos para lidar com a singularidade que, por um lado, nos isola no mundo e, por outro, nos aproxima da nossa própria essência. O primeiro consiste, como vimos, em aceitarmos nossa singularidade. Muitas vezes, tentamos nos encaixar em moldes, em um ideal de realização que não é exatamente nosso. Ou, pior de tudo, em um desejo que é exclusivamente do outro. Aceitar quem somos, com o que nos falta e principalmente com o que nos sobra, permite vivermos de maneira plena e autêntica e oferecermos ao mundo uma contribuição que é, em essência, insubstituível. Sentirmo-nos diferentes também nos oferece uma oportunidade única para nossa autodescoberta. Assim como percorri virtualmente o mundo e descobri Tristão da Cunha, podemos explorar nosso universo interior e revelar aspectos de nós mesmos que não conhecíamos. Essa jornada pode ser enriquecedora e nos ajudar a compreender nossas motivações, paixões, valores e propósito de vida. A sensação de ser diferente pode ser, ainda, um atalho para exercermos nossa criatividade. Refiro-me aqui à maneira nova com que cada um de nós pode, a cada dia, decidir viver a própria vida e a relacionar-se com os outros de um modo diferente do anterior, promovendo pequenas grandes realizações que implicam aproveitar as qualidades que nos diferenciam. E isso é algo importante porque não há possibilidade de criação interior sem antes nos conectarmos com o que há de único em nós. Se tal implicar sermos um ponto distante no mapa, que seja; teremos depois recursos suficientes para construir nossas pontes particulares e nos conectarmos com o resto do mundo sem deixarmos de ser nós mesmos. Permita-se explorar novas ideias, experimentar e criar, sem medo de julgamentos. Crie um mundo em que cada dado da realidade objetiva se harmonize com sua realidade subjetiva; o processo pode ser prazeroso e surpreendente. Não perca tempo precioso duvidando da sua capacidade de criar. A vida recompensa quem ousa. Um cuidado a ser tomado é que protagonizar nossa própria história não deve se tornar sinônimo de individualismo, menos ainda de solidão. Ao entender e aceitar nossas próprias diferenças, nos tornamos mais empáticos em relação às diferenças dos outros. Isso permite construir conexões mais profundas e significativas – diminuir distâncias? – inspirando os outros a fazer o mesmo, formando uma rede de apoio e compreensão. Em último lugar, mas não menos importante, habitar nossas ilhas particulares pode ser desafiador, mas também nos tornar mais resilientes. Através das dificuldades e do isolamento, aprendemos a confiar em nós mesmos e a encontrar uma força interior que talvez não imaginássemos possuir. Essa resiliência nos prepara para enfrentar desafios com coragem e determinação. Coragem esta que é o motor da vida.

Nessa perspectiva, conciliarmo-nos com a nossa história significa aceitarmos nossa singularidade e promovermos arranjos internos que nos possibilitem viver bem apesar dela e, ao mesmo tempo, graças a ela.

***

Enquanto escrevo, percebo que a pausa sem maiores pretensões que me levou a descobrir a ilha habitada mais isolada do mundo teve a função simbólica de tentar conectar a minha essência em meio a um dia estressante. Ou de me transportar até um lugar confortável, harmonioso e único dentro de mim mesmo. São interessantes as hipóteses para explicar as coisas mais sem sentido que fazemos. Nos apropriemos dos nossos momentos lúdicos, eles falam muito sobre nós.

Gostaria de finalizar esse post, que já percebo extenso, com uma estrofe do soneto de Luís de Camões, compatriota e quase contemporâneo do navegador português Tristão da Cunha, em homenagem ao qual “minha” ilha foi nomeada. Há muitas intepretações plausíveis, mas vejo aqui a do crescimento pessoal e emocional que nos conduz à autoaceitação e ao amor-próprio. Isso minimizaria a necessidade de dependermos do outro para completarmos a parte que nos falta, por já a termos encontrado dentro de nós mesmos:

Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho logo mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.


Nossas recém-descobertas ilhas, paraíso e refúgio. Que nossa individualidade não implique solidão, mas aconchego para a própria alma. Cada um de nós é um ponto único no mapa da vida, e sermos únicos nos torna nada menos que extraordinários.








Crédito da imagem: SnowWhiteimages / iStock

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