E se eu voar?

No inverno de 2023, visitei a cidade de Manchester, no noroeste da Inglaterra. Foi a minha primeira – e até agora única – vez ali e também no Reino Unido. Apesar da sensação de um frio rigoroso para o padrão a que nós, brasileiros, estamos habituados, frio esse agravado pela umidade do ar, me pus a percorrer a cidade a pé, guiado pelo GPS na tela do celular.

Mal comecei a dizer o que gostaria e já interrompo para abrir parênteses. Gosto de conhecer lugares novos dessa forma: na sola do sapato, vendo, ouvindo e sentindo as cidades como elas realmente são, com suas ruas, casas, pessoas, cheiros e sons reais. Tenho a impressão de que a gente, ao conhecer uma cidade nova, de dentro de uma van ou de um ônibus, com um guia local nos falando ao microfone ou uma gravação automática chegando àqueles fones de ouvido que plugamos numa saída em frente ao nosso assento, não tem como fazer isso de uma maneira tão autêntica quanto quando a percorremos a pé, isto é, apoiando-nos sobre nada mais que nós mesmos.

Aprendi isso graças a um livrinho que uma amiga muito querida, que infelizmente não encontro há muito tempo, me presenteou uma vez ao saber que eu ia viajar para Paris. O nome desse livro é O flâneur - um passeio pelos paradoxos de Paris, de Edmund White. Trata-se de um inusitado guia de viagens, que sugere um roteiro para percorrer a cidade-luz inteirinha a pé, passando por lugares pitorescos e geralmente esquecidos pelos guias de viagem, como o endereço de escritores, pensadores e artistas que lá viveram, bares onde os intelectuais dos anos 1960 (e de antes) se reuniam, recantos que marcaram o papel da cidade não na História ocidental, mas na história íntima de pessoas tão reais quanto as calçadas e jardins sob nossos pés. Foi um dos melhores presentes que já ganhei, porque aproveitei cada página, representada em cada passo dos meus pés. De lá para cá, até hoje, a possibilidade de conhecer um lugar explorando-o a pé pesa na decisão de visitá-lo.

Mas voltando. Foi nas ruas da Manchester fria e molhada – tingida naquele tom terracota que a gente se depara nas cidades anglófonas do velho e do novo mundo, graças à sua arquitetura de tijolos aparentes, que têm uma certa personalidade, mas ao mesmo tempo podem parecer um tanto enfadonhos aos nossos olhos habituados ao colorido das paisagens tropicais – foi lá que me deparei, na metade de uma quadra para a qual eu não tinha dado muita atenção, com o painel da foto a seguir:




Diante dessa mensagem autêntica, vigorosa, como aquelas que sacodem a alma da gente e nos põem a pensar, parei diante dela e fiquei só a absorvendo por alguns instantes, ainda sentindo no rosto a brisa gelada daquele pedaço de mundo, entremeada por um ou outro raio de sol que, tímido, ousava atravessar as nuvens pesadas, cinzentas, e surpreender as profundezas das retinas como um pequeno projétil arremessado sobre a superfície de águas tranquilas. Numa tradução, que na minha cabeça soa melhor em português, dizia algo como: "E se eu cair? Ah, meu amigo, mas e se você voar...?".

Eu sei. Deve estar batida já. Mas foi a primeira vez que a li e ficou passeando por minha mente até o final daquela viagem; talvez depois, até. Mais tarde, descobri que se trata de um verso do poema da australiana Erin Hanson, que o compôs aos 21 anos de idade. Essa informação me fez gostar mais ainda do que li.

***

Posso vestir as asas, tentar levantar voo com elas, correndo o risco de cair. Mais que frustrar uma expectativa, posso me machucar. Mas essas “asas” de que falamos aqui não são feitas de cera como as de Ícaro, o personagem da mitologia grega, que apesar das orientações de seu pai, Dédalo, cai das alturas ao aproximar-se demasiado do sol com suas asas recém-criadas no exílio com penas, fios de coberta, roupas e cera de abelha.

As "asas" que a poesia nos sugere e inspira são asas simbólicas, uma metáfora para a arrogância (no contexto do mito), mas, no nosso contexto aqui, para a ideia de possibilidades. Conceituais, e não concretas, é bem provável que essas asas, caso se desfaçam, não provoquem nenhum acidente fatal. Cair e ferir-se na queda é um risco que merece ser ponderado, ou seja, previsto, avaliado, medido. Algumas vezes, o resultado desse cálculo sugere que o melhor é mesmo abortar a aventura.

E é aí que entre o “mas” nessa história. Posso cair; fato. Posso cair, mas... também posso ser bem-sucedido! Posso tentar “voar” por meio dos meus sonhos, meus projetos, meus desejos. Posso tentar que a pessoa a que eu aspiro ser decole do papel onde, por tanto tempo, repousa seu esboço. Posso tentar tornar as coisas reais e... e realizar o que elas me impelem a viver. Já pensou se isso acontece?

A reflexão se aplica a mim diretamente, como também aos meus pacientes. Quantos desses últimos já não passaram angustiados pelo meu consultório, não com fracassos passados e, portanto, conhecidos, mas com possibilidades – potencialidades – que se descortinam na etapa presente de suas existências.

O quanto não planejam(os) não só realizações como fazer uma viagem, uma faculdade, arrumar o emprego dos sonhos, juntar dinheiro, ter um filho, um relacionamento especial, ou, simplesmente, mudar dentro de nós aquele sentimento, aquela visão disfuncional de nós mesmos, das pessoas e do mundo, aquele jeito de ser a que, na melhor das hipóteses, chamamos padrão e, na pior, karma ou destino. Com que frequência não acabamos avançando uma linha sequer além do planejamento, pela descrença na nossa capacidade de virar a página e mudar a realidade presente?

O quanto não nos agarramos aos fatos do passado, aos conceitos cristalizados que construímos acerca de nós mesmos, ao desânimo diante do enorme esforço que precisará ser empregado para mover a alavanca da mudança?

O quanto não estamos com as nossas asas simbólicas cortadas, ou presas a impedimentos também simbólicos, a ideias pré-concebidas sobre nós mesmos que, como pesado fardo, nos prendem ao chão e nos impedem de sermos melhores?

Tudo bem, as suspeitas negativas podem mesmo se confirmar, mostrando que o projeto era de fato inviável. E está tudo certo se essa constatação tiver sido feita após uma tentativa, ou várias, de alçar voo. Porque – filosofia de botequim, mas nem por isso menos verdadeira – se não tentamos, temos a certeza de um único resultado certo e inafastável, que é o “não”; se tentamos, temos no mínimo dois desfechos possíveis: sucesso ou fracasso. Sem contar as possibilidades intermediárias, que não deixam de ter seu charme.

No nosso mundo interno, nenhuma mudança é pequena, nenhum avanço é desprezível, nenhum voo é pífio. Só quem ousou mudar-se internamente, fazer diferente, não para fora, mas para dentro, tem a noção da grandeza e do significado de uma tal mudança.

Tudo isso para perguntar aos meus pacientes, e também a mim mesmo, quantas vezes nossos projetos, tão minuciosos no que tangem ao cálculo dos riscos, deixam fora da contabilidade os benefícios advindos da possibilidade de... darem certo! Seja perseguindo um projeto concreto ou meramente um jeito de passar a fazer algo de maneira sutilmente diferente do que sempre fizemos – uma conquista que só nós percebemos e festejamos. Com um prazer de dar gosto.

Tenho total consciência dos espinhos, cicatrizes e dos mais diversos tipos de impedimentos emocionais e materiais que cada um, em particular, possa apresentar e que se opõem a uma tal possibilidade. Daí a importância do trabalho psicoterapêutico, para entender a dimensão do que nos falta, bem como a dimensão do que temos, para alçar nosso voo pessoal.

Agora, chegando ao final dessas reflexões, acho que compreendi por que as iniciei mencionando a exploração, a pé, de lugares desconhecidos, antes de falar sobre o processo de voar. Talvez seja porque, para voarmos, precisamos antes estar com os pés firmemente apoiados no chão, chão que representa a realidade de hoje, do aqui e do agora. Precisamos estar convictos de que nossos sentimentos e pensamentos não estão nos iludindo, isto é, que estamos conscientes e apropriados dos nossos descontentamentos e dos nossos desejos e planos. Só a partir disso o voo é não apenas possível, mas legítimo.

Boas caminhadas aí pelo seu mundo interior, com suas calçadas molhadas pela fria umidade dos medos mais íntimos, mas também iluminadas por raios de sol. Que você caminhe com segurança e leveza sobre o chão que seus pés tocam conscientemente.

Que você pegue impulso para “voar”.










Crédito da imagem: o autor

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